Má-rotação Intestinal

Abr de 2021.

Caso clínico

Recém-nascido do sexo masculino, adequado para a idade gestacional (39 semanas + 5 dias), nascido a termo, apresenta, logo nos primeiros dias de vida, distensão abdominal, regurgitação e perda ponderal. Antecedentes de parto cesárea por sofrimento fetal agudo e de múltiplas malformações detectadas nos exames de pré-natal.

Realizada investigação com estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED), no 35º dia de vida.

Achados de imagem

Terceira e quarta porções do duodeno, assim como alças de jejuno, situadas à direita da linha média, compatíveis com má-rotação intestinal.

 

 

Figura 1: Estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED) demonstrando terceira e quarta porções do duodeno, assim como alças do jejuno, situadas à direita da linha média (setas vermelhas).

 

Evidenciados ainda numerosos e sucessivos episódios de refluxo gastroesofágico grau II e III, sem clareamento completo entre os episódios.

Figura 2: Estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED) demonstrando refluxo gastroesofágico grau II e III (setas azuis).

 

Figura 3 - Ilustração mostrando a rotação intestinal normal e a anormal. Note que na rotação normal, a junção piloro-duodenal está na mesma altura da junção duodeno-jejunal. Na rotação anormal essa relação é perdida.

Hipótese Diagnóstica: Má-rotação intestinal.

Patologia:

O desenvolvimento embriológico intestinal é complexo. Inicialmente, há herniação intestinal para fora da cavidade abdominal, na qual uma rotação (270°) no sentido anti-horário se faz em relação ao eixo da artéria mesentérica superior. Aproximadamente, na décima segunda semana de gestação o intestino médio retorna para a cavidade abdominal e a junção duodeno-jejunal (JDJ) se fixa à parede posterior do abdome, na sua porção lateral esquerda da coluna vertebral e ao ligamento de Treitz, enquanto o ceco se fixa no quadrante inferior direito.

A má-rotação intestinal decorre de falha na rotação intestinal extracelômica, gerando um defeito na fixação do mesentério. Comumente, a JDJ passa a ser localizada no quadrante superior direito e o ceco no abdome superior. Essa fixação anômala se faz por bandas adesivas (bandas de Ladd) na vesícula biliar, duodeno e parede abdominal direita. Essa bandas adesivas podem comprimir o duodeno, ocasionando um quadro obstrutivo, clinicamente manifestado por vômitos biliosos. Além disso, tem-se uma base mesentérica estreita, o que predispõe ao volvo intestinal. Menos frequentemente, o intestino faz uma rotação (90°) no sentido horário, posicionando o duodeno anteriormente e o cólon posteriormente, com a formação de um túnel que pode obstruir parcialmente os vasos mesentéricos.

 

Figura 4: Ilustração mostrando as partes do duodeno. Imagem adaptada de: Netter, F. H. 1. (2014). Atlas of human anatomy. Sixth edition.

 

Epidemiologia:

A má-rotação intestinal é uma anormalidade congênita vista em até 1:6000 nascidos vivos.

 

Apresentação clínica:

A apresentação clínica de má-rotação pode se manifestar de diversas formas. Em recém-nascidos se manifesta com vômitos biliosos. Existe a possibilidade da ocorrência de volvo na base mesentérica (principal complicação), causando torção dos vasos mesentéricos superiores. A continuidade da isquemia provoca sintomas como hematoquezia, irritabilidade, dor e distensão abdominais. O quadro pode evoluir com necrose intestinal, que se manifesta por eritema abdominal, sinais de peritonite, choque séptico e óbito.

Crianças mais velhas podem apresentar volvo crônico, apresentando dor abdominal em cólica, distensão abdominal com vômitos intermitentes, diarreia, sangramento gastrointestinal e desnutrição.

Associações:

É associada com outras anormalidades abdominais em até 50% das vezes. São elas:

  • Malformações do trato gastrointestinal: atresia, estenose ou bandas do duodeno; gastrosquise e onfalocele.
  • Malformação do sistema biliar: agenesia de vesícula biliar, atresia biliar intra e extra-hepática.
  • Malformações pancreáticas: hipoplasia ou agenesia da porção dorsal do pâncreas.
  • Hérnia diafragmática congênita.
  • Heterotaxia.
  • Atresia de coanas.
  • Hipospádia.

Achados de imagem:

- Radiografia simples: não apresenta sinais específicos, exceto na presença de volvo.

- Ultrassonografia: pode demonstrar inversão da relação entre artéria mesentérica superior (AMS)/veia mesentérica superior (VMS). Normalmente a AMS fica à direita  da VMS. Destaca-se que uma relação AMS/VMS normal não exclui a hipótese de má-rotação intestinal. Um sinal mais útil é demonstrar o terceiro segmento do duodeno em posição retro-mesentérica, onde o segmento horizontal do duodeno (terceiro segmento) é visto num plano transverso entre os vasos mesentéricos superiores e a aorta. Este sinal, embora extremamente sensível e específico, ainda não exclui completamente a possibilidade de má-rotação intestinal.

- Tomografia computadorizada: a depender do grau de má-rotação, pode demonstrar: ausência do terceiro segmento do duodeno em posição retro-mesentérica, inversão da relação AMS/VMS, intestino grosso predominantemente à esquerda e intestino delgado predominantemente à direita.

- Fluoroscopia: o estudo contrastado do trato gastrointestinal superior é o exame de escolha quando aventada a hipótese diagnóstica de má-rotação intestinal. O achado chave de má-rotação é a localização anormal da junção duodeno-jejunal (JDJ):

  • Visão frontal: JDJ falha em cruzar a linha média para à esquerda e posiciona-se inferiormente ao bulbo duodenal.
  • Visão lateral: segundo e terceiro segmentos do duodeno não se localizam em posição retroperitoneal.

Diagnósticos diferenciais:

Uma taxa de 15% de falsos positivos é reportada no diagnóstico de má rotação intestinal usando contraste baritado via oral. Assim, os seguintes diagnósticos devem ser pensados:

  • Duodeno normal: localizado inferiormente por causa da distensão gástrica ou por outras malformações, como agenesia renal, esplenomegalia etc.
  • Duodenum inversum.

Tratamento e prognóstico:

Devido a condição potencialmente fatal do volvo do intestino médio e isquemia mesentérica, uma vez descoberta a má-rotação intestinal ela deve ser corrigida cirurgicamente. O procedimento se baseia na correção anti-horária da rotação do volvo, divisão das faixas de Ladd, alargamento do feixe mesentérico e posicionamento do intestino delgado no quadrante inferior direito e do intestino grosso no superior esquerdo. A laparoscopia tem sido utilizada em pacientes estáveis, enquanto a técnica aberta é preferida quando há volvo e suas complicações. A apendicectomia cecal, preconizada por muitos autores no tratamento da MRI, é controversa, pois outros a contraindicam.

Referências:

1) Pickhardt PJ, Bhalla S. Intestinal malrotation in adolescents and adults: spectrum of clinical and imaging features. AJR Am J Roentgenol. 2002;179 (6): 1429-35. 

2) Long FR, Kramer SS, Markowitz RI et-al. Radiographic patterns of intestinal malrotation in children. Radiographics. 1996;16 (3): 547-56.

3) Graziano K, Islam S, Dasgupta R. Asymptomatic malrotation: diagnosis and surgical management: an American Pediatric Surgical Association outcomes and evidence based practice committee systematic review. Pediatr Surg. 2015; 50(10):1783-90.

4) Mattei P. Fundamentals of Pediatric Surgery. Springer Verlag. (2011) ISBN:1441966420. 

5) Netter, F. H. 1. (2014). Atlas of human anatomy. Sixth edition.

BORELLA, Luiz. WERTHEIMER, Guilherme. Má-rotação Intestinal. Dr.Pixel. Campinas: Dr Pixel, 2021. Disponível em: https://drpixel.fcm.unicamp.br/conteudo/ma-rotacao-intestinal. Acesso em: 19 Abr. 2024
Luiz Borella

Graduado em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2013-2018). Atualmente, médico residente em Radiologia e Diagnóstico de Imagem na UNICAMP (2020-2023).

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Guilherme Soares de Oliveira Wertheimer

Possui graduação em Ciências Biológicas-Modalidade médica pela Universidade Federal de São Paulo (2007-2010) com ênfase em Neurociências. Graduação em Medicina na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2012-2017) com cursos internacionais, trabalhos extracurriculares e de iniciação científica em Neuroimagem. Atualmente residente de Radiologia e Diagnóstico de Imagem na UNICAMP (2019-2022).

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