Má-rotação Intestinal
Caso clínico
Recém-nascido do sexo masculino, adequado para a idade gestacional (39 semanas + 5 dias), nascido a termo, apresenta, logo nos primeiros dias de vida, distensão abdominal, regurgitação e perda ponderal. Antecedentes de parto cesárea por sofrimento fetal agudo e de múltiplas malformações detectadas nos exames de pré-natal.
Realizada investigação com estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED), no 35º dia de vida.
Achados de imagem
Terceira e quarta porções do duodeno, assim como alças de jejuno, situadas à direita da linha média, compatíveis com má-rotação intestinal.
Figura 1: Estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED) demonstrando terceira e quarta porções do duodeno, assim como alças do jejuno, situadas à direita da linha média (setas vermelhas).
Evidenciados ainda numerosos e sucessivos episódios de refluxo gastroesofágico grau II e III, sem clareamento completo entre os episódios.
Figura 2: Estudo contrastado de esôfago-estômago-duodeno (EED) demonstrando refluxo gastroesofágico grau II e III (setas azuis).
Figura 3 - Ilustração mostrando a rotação intestinal normal e a anormal. Note que na rotação normal, a junção piloro-duodenal está na mesma altura da junção duodeno-jejunal. Na rotação anormal essa relação é perdida.
Hipótese Diagnóstica: Má-rotação intestinal.
Patologia:
O desenvolvimento embriológico intestinal é complexo. Inicialmente, há herniação intestinal para fora da cavidade abdominal, na qual uma rotação (270°) no sentido anti-horário se faz em relação ao eixo da artéria mesentérica superior. Aproximadamente, na décima segunda semana de gestação o intestino médio retorna para a cavidade abdominal e a junção duodeno-jejunal (JDJ) se fixa à parede posterior do abdome, na sua porção lateral esquerda da coluna vertebral e ao ligamento de Treitz, enquanto o ceco se fixa no quadrante inferior direito.
A má-rotação intestinal decorre de falha na rotação intestinal extracelômica, gerando um defeito na fixação do mesentério. Comumente, a JDJ passa a ser localizada no quadrante superior direito e o ceco no abdome superior. Essa fixação anômala se faz por bandas adesivas (bandas de Ladd) na vesícula biliar, duodeno e parede abdominal direita. Essa bandas adesivas podem comprimir o duodeno, ocasionando um quadro obstrutivo, clinicamente manifestado por vômitos biliosos. Além disso, tem-se uma base mesentérica estreita, o que predispõe ao volvo intestinal. Menos frequentemente, o intestino faz uma rotação (90°) no sentido horário, posicionando o duodeno anteriormente e o cólon posteriormente, com a formação de um túnel que pode obstruir parcialmente os vasos mesentéricos.
Figura 4: Ilustração mostrando as partes do duodeno. Imagem adaptada de: Netter, F. H. 1. (2014). Atlas of human anatomy. Sixth edition.
Epidemiologia:
A má-rotação intestinal é uma anormalidade congênita vista em até 1:6000 nascidos vivos.
Apresentação clínica:
A apresentação clínica de má-rotação pode se manifestar de diversas formas. Em recém-nascidos se manifesta com vômitos biliosos. Existe a possibilidade da ocorrência de volvo na base mesentérica (principal complicação), causando torção dos vasos mesentéricos superiores. A continuidade da isquemia provoca sintomas como hematoquezia, irritabilidade, dor e distensão abdominais. O quadro pode evoluir com necrose intestinal, que se manifesta por eritema abdominal, sinais de peritonite, choque séptico e óbito.
Crianças mais velhas podem apresentar volvo crônico, apresentando dor abdominal em cólica, distensão abdominal com vômitos intermitentes, diarreia, sangramento gastrointestinal e desnutrição.
Associações:
É associada com outras anormalidades abdominais em até 50% das vezes. São elas:
- Malformações do trato gastrointestinal: atresia, estenose ou bandas do duodeno; gastrosquise e onfalocele.
- Malformação do sistema biliar: agenesia de vesícula biliar, atresia biliar intra e extra-hepática.
- Malformações pancreáticas: hipoplasia ou agenesia da porção dorsal do pâncreas.
- Hérnia diafragmática congênita.
- Heterotaxia.
- Atresia de coanas.
- Hipospádia.
Achados de imagem:
- Radiografia simples: não apresenta sinais específicos, exceto na presença de volvo.
- Ultrassonografia: pode demonstrar inversão da relação entre artéria mesentérica superior (AMS)/veia mesentérica superior (VMS). Normalmente a AMS fica à direita da VMS. Destaca-se que uma relação AMS/VMS normal não exclui a hipótese de má-rotação intestinal. Um sinal mais útil é demonstrar o terceiro segmento do duodeno em posição retro-mesentérica, onde o segmento horizontal do duodeno (terceiro segmento) é visto num plano transverso entre os vasos mesentéricos superiores e a aorta. Este sinal, embora extremamente sensível e específico, ainda não exclui completamente a possibilidade de má-rotação intestinal.
- Tomografia computadorizada: a depender do grau de má-rotação, pode demonstrar: ausência do terceiro segmento do duodeno em posição retro-mesentérica, inversão da relação AMS/VMS, intestino grosso predominantemente à esquerda e intestino delgado predominantemente à direita.
- Fluoroscopia: o estudo contrastado do trato gastrointestinal superior é o exame de escolha quando aventada a hipótese diagnóstica de má-rotação intestinal. O achado chave de má-rotação é a localização anormal da junção duodeno-jejunal (JDJ):
- Visão frontal: JDJ falha em cruzar a linha média para à esquerda e posiciona-se inferiormente ao bulbo duodenal.
- Visão lateral: segundo e terceiro segmentos do duodeno não se localizam em posição retroperitoneal.
Diagnósticos diferenciais:
Uma taxa de 15% de falsos positivos é reportada no diagnóstico de má rotação intestinal usando contraste baritado via oral. Assim, os seguintes diagnósticos devem ser pensados:
- Duodeno normal: localizado inferiormente por causa da distensão gástrica ou por outras malformações, como agenesia renal, esplenomegalia etc.
- Duodenum inversum.
Tratamento e prognóstico:
Devido a condição potencialmente fatal do volvo do intestino médio e isquemia mesentérica, uma vez descoberta a má-rotação intestinal ela deve ser corrigida cirurgicamente. O procedimento se baseia na correção anti-horária da rotação do volvo, divisão das faixas de Ladd, alargamento do feixe mesentérico e posicionamento do intestino delgado no quadrante inferior direito e do intestino grosso no superior esquerdo. A laparoscopia tem sido utilizada em pacientes estáveis, enquanto a técnica aberta é preferida quando há volvo e suas complicações. A apendicectomia cecal, preconizada por muitos autores no tratamento da MRI, é controversa, pois outros a contraindicam.
Referências:
1) Pickhardt PJ, Bhalla S. Intestinal malrotation in adolescents and adults: spectrum of clinical and imaging features. AJR Am J Roentgenol. 2002;179 (6): 1429-35.
2) Long FR, Kramer SS, Markowitz RI et-al. Radiographic patterns of intestinal malrotation in children. Radiographics. 1996;16 (3): 547-56.
3) Graziano K, Islam S, Dasgupta R. Asymptomatic malrotation: diagnosis and surgical management: an American Pediatric Surgical Association outcomes and evidence based practice committee systematic review. Pediatr Surg. 2015; 50(10):1783-90.
4) Mattei P. Fundamentals of Pediatric Surgery. Springer Verlag. (2011) ISBN:1441966420.
5) Netter, F. H. 1. (2014). Atlas of human anatomy. Sixth edition.