Interpretação do doppler obstétrico na avaliação da vitalidade fetal
Dr. Danilo Eduardo Abib Pastore
Dra Isabela Salvetti Valente
Prof. Dr. Rodrigo Menezes Jales
Última atualização em julho de 2024
Introdução
O doppler obstétrico é um dos recursos disponíveis para a avaliação da vitalidade fetal em gestações com risco de insuficiência placentária. Os outros métodos são o controle da movimentação fetal (mobilograma), a cardiotocografia e o perfil biofísico fetal.
Atualmente a tecnologia Doppler está disponível na maioria dos equipamentos de ultrassonografia. Através desse recurso é possível detectar e quantificar a resistência ao fluxo sanguíneos em diferentes vasos fetais. Alterações da circulação útero-placentária e algumas das suas repercussões na hemodinâmica fetal podem ser diagnosticadas pela diminuição ou pelo aumento da resistência ao fluxo sanguíneo em determinados vasos, sendo os mais frequentemente estudados: a artéria umbilical, a artéria cerebral média e o ducto venoso.
Artéria umbilical
O Doppler colorido é utilizado para localizar adequadamente o vaso a ser examinado. Na figura são identificadas as duas artérias (em vermelho) e a veia (azul) umbilical.
A resistência ao fluxo sanguíneo nas artérias umbilicais depende diretamente das condições da circulação útero-placentária. Alterações no desenvolvimento ou do funcionamento dos espaços intervilosos podem em algumas situações provocar alterações no fluxo das artériais umbilicais, onde a resistência ao fluxo sanguíneo torna-se aumentada.
Depois de identificado o vaso a ser estudado, utiliza-se o Doppler espectral para traçar um gráfico que relaciona a velocidade das hemácias em função do tempo, através do qual são calculados diferentes índices. O índice com melhor desempenho na avaliação da vitalidade fetal é o índice de pulsatilidade (IP), na figura representado como "Umb-PI".
Os valores de referência do IP variam conforme a idade gestacional.
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) na artéria umbilical em função da idade gestacional - percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na artéria umbilical, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP aumentou consideravelmente, com valor limítrofe (percentil 95%). Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.
Doppler pulsado alterado na artéria umbilical. Representadas em amarelo a diástole reduzida. IP =1.6 (aumentado para a idade gestacional de 28 semanas)
Com a evolução da insuficiência útero-placentária o aumento da resistência ao fluxo sanguíneo na artéria umbilical impede o fluxo sanguíneo durante a diástole (diástole zero).
As setas em amarelo se referem aos pontos do espectro em que não é detectado fluxo diastólico na artéria umbilical - sinal de insuficiência útero-placentária.
O último estágio do aumento da resistência na artéria umbilical identificado pelo Doppler é a inversão do fluxo sanguíneo durante a diástole: a diástole reversa.
Diástole reversa na artéria umbilical representada em vermelho
Na avaliação Dopplervelocimétrica da artéria umbilical, o índice de pulsatilidade (IP) tem estrita relação com o pleno funcionamento da placenta, refletindo a proporção de vilosidades coriais que desempenham corretamente as suas funções de trocas gasosas entre mãe e feto:
- Nas situações em que o IP se encontra abaixo do percentil 95% para a idade gestacional (IG), tem-se que entre 75-100% das vilosidades funcionam adequadamente.
- Acima do percentil 95%, essa proporção cai para 50-75% das vilosidades
- Nos casos de diástole zero, apenas 25-50% das vilosidades realizam as trocas corretamente, implicando em falência placentária grave.
- Já quando se tem a diástole reversa, essa proporção é de menos de 25%, o que está relacionado com elevada incidência de acidemia fetal e morbidade neonatal.
Artéria cerebral média
A resposta fetal diante da hipóxia crônica provocada pela insuficiência placentária é avaliada pelo estudo do Doppler da artéria cerebral média. Devido à redistribuição do fluxo sanguíneo fetal no estado de hipóxia, há uma priorização de fluxo a determinados órgãos e sistemas, como as adrenais, o miocárdio e o cérebro, o que caracteriza a centralização fetal. Mensura-se esse estado de centralização através do estudo da artéria cerebral média, que demonstrará um aumento do fluxo diastólico e uma diminuição da resistência em sua circulação. Assim, valores de IP abaixo do percentil 5 para a idade gestacional são considerados anormais.
A artéria cerebral média (ACM), devido ao seu trajeto e topografia, é a artéria do sistema nervoso central melhor acessível ao Doppler. Artéria cerebral média (seta azul), adjacente ao Polígono de Willis
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) na ACM em função da idade gestacional - percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na ACM, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP diminuiu consideravelmente. Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.
Doppler normal na ACM. Notar a presença de fluxo diastólico mínimo (realces em azul). IP=2,2, normal para a idade gestacional de 26s+4d.
Doppler alterado na ACM. Notar fluxo diastólico abundante (realces em azul). IP=0,97, alterado para a idade gestacional de 35s+6d.
Ducto venoso
O ducto venoso é um curto trajeto vascular, com apenas alguns milímetros. Durante a vida fetal, ele desvia o sangue da veia porta esquerda para a veia cava inferior. Essa comunicação é necessária durante a vida fetal para que o sangue oxigenado originário da placenta, que chega ao feto pela veia umbilical, não passe pelo sistema porta ante de chegar ao coração. Após o nascimento o ducto venoso é obliterado e dá origem ao ligamento venoso.
Persistindo o insulto placentário com consequente hipóxia fetal, após as alterações de fluxo da artéria umbilical e da ACM, a manutenção da vasoconstrição periférica termina implicando em um aumento da pressão das câmaras cardíacas, e, por conseguinte, em alterações no território venoso fetal. O aumento da pressão cardíaca no ventrículo direito acarreta em um fluxo retrógrado na veia cava inferior durante a contração atrial, o que provoca uma redução no fluxo sanguíneo no ducto venoso. Dessa maneira, o estudo Doppler deste vaso exibe um aumento dos valores de IP nessa situação. Com a evolução do quadro, a onda “A” (que se refere à sístole atrial) se mostra ausente ou reversa. Assim, o ducto venoso é considerado um importante parâmetro hemodinâmico preditor de morbidade e mortalidade neonatal, uma vez que, quanto maior seu IP, menor é o pH ao nascimento, correlacionando-se fortemente com eventos neonatais adversos.
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) no ducto venoso em função da idade gestacional - percentis 50% (verde) e 97% (vermelho).
O ducto venoso apresenta um aspecto característico ao Doppler espectral, com dois picos e um vale, relacionados ao fluxo e à resistência do coração fetal. O primeiro pico representa a sístole ventricular. O segundo pico representa a diástole ventricular. O vale representa a sístole atrial e é chamado de "onda a".
A redução, a ausência e a inversão do fluxo nesse ponto são relacionados à hipóxia fetal.
Doppler normal no ducto venoso. Notar a presença de fluxo abundante (realces em verdes) no momento da contração atrial fetal ("onda A").
Doppler alterado no ducto venoso. Notar a ausência de fluxo (setas amarelas) no momento da contração atrial fetal ("onda A").
Artérias uterinas
A invasão trofoblástica normal ocorre no primeiro trimestre da gestação, ocorrendo a penetração do endométrio por tecido placentário e o remodelamento dos vasos sanguíneos uterinos, para garantir um suprimento sanguíneo adequado à placenta em crescimento. Quando há deficiência nesse processo e não há uma diminuição fisiológica da resistência vascular uterina, pode haver complicações na gravidez, como pré-eclâmpsia e restrição de crescimento fetal.
Enquanto a artéria umbilical nos informa a respeito do compartimento fetal da placenta, a avaliação com Dopplervelocimetria das artérias uterinas nos informa sobre o funcionamento do compartimento materno.
A resistência aumentada nas artérias uterinas, notadamente no primeiro trimestre, é fator de risco para desenvolvimento de pré-eclâmpsia precoce (antes de 37 semanas), podendo ser o seu IP utilizado em algoritmo de cálculo de risco para essa doença, juntamente com outros dados clínicos e laboratoriais da paciente.
O Doppler das artérias uterinas também é utilizado como critério diagnóstico da restrição de crescimento fetal precoce. Em fetos com peso estimado entre os percentis 3 e 10, o diagnóstico de restrição de crescimento será dado pela presença de alteração de Doppler, sendo o das uterinas uma das possibilidades, juntamente com o das artérias umbilicais.
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) médio das artérias uterinas, em função da idade gestacional - percentis 50% (verde) e 97% (vermelho)
A incisura protodiastólica marcada en amarelo sugere aumento na resistência ao fluxo sanguíneo, que deve ser quantificado pelo valor do IP, nesse caso IP=1,96, alterado dado que a gestação tem 25 semanas. Veja que a frequência cardíaca materna é menor (há menos ciclos no mesmo intervalo de tempo) do que a frequência cardíaca fetal registrada nos espectros fetais obtidos nas artérias umbilical e cerebral média e no ducto venoso.
As alterações do Doppler devem ser avalaidas, sempre que possível, em associação com o percentil do peso fetal estimado pela biometria, para que se identifiquem os casos de Restrição de Crescimento Fetal (RCF), que devem ser classificados e conduzidos da seguinte forma:
Interpretação e conduta para as alterações do Doppler Obstétrico associado ao percentil do peso fetal estimado segunto Figueiras e Gratacós (2014)*.
RCF = restricção do crescimento fetal. PIG = pequeno para a idade gestacional CA= circunferência abdominal; AUMB = artéria umbilical; AUt = artéria uterina. DV = ducto venoso; CTG = cardiotocografia
* Figueras F & Gratacós E; Update on the Diagnosis and Classification of Fetal Growth Restriction and Proposal of a Stage-Based Management Protocol, Fetal Diagn Ther, 2014; 36:86-98