Interpretação do doppler obstétrico na avaliação da vitalidade fetal

Mar de 2016.

Dr. Danilo Eduardo Abib Pastore

Dra Isabela Salvetti Valente

Prof. Dr. Rodrigo Menezes Jales

                                                                                                                                                                                                       


 

Última atualização em julho de 2024

 

Introdução

 

O  doppler obstétrico é  um dos recursos disponíveis para a avaliação da vitalidade fetal em gestações com risco de insuficiência placentária. Os outros métodos são o controle da movimentação fetal (mobilograma), a cardiotocografia e o perfil biofísico fetal.

 

Atualmente a tecnologia Doppler está disponível na maioria dos equipamentos de ultrassonografia. Através desse recurso é possível detectar e quantificar a resistência ao fluxo sanguíneos em diferentes vasos fetais. Alterações da circulação útero-placentária e algumas das suas  repercussões na hemodinâmica fetal podem ser diagnosticadas pela diminuição ou pelo aumento da resistência ao fluxo sanguíneo em determinados vasos, sendo os mais frequentemente estudados: a artéria umbilical, a artéria cerebral média e o ducto venoso.


 

Artéria umbilical

 

O Doppler colorido é utilizado para localizar adequadamente o vaso a ser examinado. Na figura são identificadas as duas artérias (em vermelho) e a veia (azul) umbilical.

 

A resistência ao fluxo sanguíneo nas artérias umbilicais depende diretamente das condições da circulação útero-placentária. Alterações no desenvolvimento ou do funcionamento dos espaços intervilosos podem em algumas situações provocar alterações no fluxo das artériais umbilicais, onde a resistência ao fluxo sanguíneo torna-se aumentada. 

 

Depois de identificado o vaso a ser estudado, utiliza-se o Doppler espectral para traçar um gráfico que relaciona a velocidade das hemácias em função do tempo, através do qual são calculados diferentes índices. O índice com melhor desempenho na avaliação da vitalidade fetal é o índice de pulsatilidade (IP), na figura representado como "Umb-PI".

 

 Os valores de referência do IP variam conforme a idade gestacional.

 

Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP)  na artéria umbilical em função da idade gestacional - percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na artéria umbilical, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP aumentou consideravelmente, com valor limítrofe (percentil 95%). Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.


 

 


Doppler pulsado alterado na artéria umbilical. Representadas em amarelo a diástole reduzida. IP =1.6  (aumentado para a idade gestacional de 28 semanas)


 

Com a evolução da insuficiência útero-placentária o aumento da resistência ao fluxo sanguíneo na artéria umbilical impede o fluxo sanguíneo durante a diástole (diástole zero).

As setas em amarelo se referem aos pontos do espectro em que não é detectado fluxo diastólico na artéria umbilical - sinal de insuficiência útero-placentária.


 

 

O último estágio do aumento da resistência na artéria umbilical identificado pelo Doppler é a inversão do fluxo sanguíneo durante a diástole: a diástole reversa.

Diástole reversa na artéria umbilical representada em vermelho

 

Na avaliação Dopplervelocimétrica da artéria umbilical, o índice de pulsatilidade (IP) tem estrita relação com o pleno funcionamento da placenta, refletindo a proporção de vilosidades coriais que desempenham corretamente as suas funções de trocas gasosas entre mãe e feto:

  • Nas situações em que o IP se encontra abaixo do percentil 95% para a idade gestacional (IG), tem-se que entre 75-100% das vilosidades funcionam adequadamente.
  • Acima do percentil 95%, essa proporção cai para  50-75% das vilosidades 
  • Nos casos de diástole zero, apenas 25-50% das vilosidades realizam as trocas corretamente, implicando em falência placentária grave.
  • Já quando se tem a diástole reversa, essa proporção é de menos de 25%, o que está relacionado com elevada incidência de acidemia fetal e morbidade neonatal.

 

Artéria cerebral média

 

A resposta fetal diante da hipóxia crônica provocada pela insuficiência placentária é avaliada pelo estudo do Doppler da artéria cerebral média. Devido à redistribuição do fluxo sanguíneo fetal no estado de hipóxia, há uma priorização de fluxo a determinados órgãos e sistemas, como as adrenais, o miocárdio e o cérebro, o que caracteriza a centralização fetal. Mensura-se esse estado de centralização através do estudo da artéria cerebral média, que demonstrará um aumento do fluxo diastólico e uma diminuição da resistência em sua circulação. Assim, valores de IP abaixo do percentil 5 para a idade gestacional são considerados anormais.

 

 

A artéria cerebral média (ACM), devido ao seu trajeto e topografia, é a artéria do sistema nervoso central melhor acessível ao Doppler. Artéria cerebral média (seta azul), adjacente ao Polígono de Willis

 

 

Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) na ACM em função da idade gestacional - percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na ACM, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP diminuiu consideravelmente. Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.

 

Doppler normal na ACM. Notar a presença de fluxo diastólico mínimo (realces em azul). IP=2,2, normal para a idade gestacional de 26s+4d.

 

Doppler alterado na ACM. Notar  fluxo diastólico abundante (realces em azul). IP=0,97, alterado para a idade gestacional  de 35s+6d.


 

Ducto venoso

 

O ducto venoso é um curto trajeto vascular, com apenas alguns milímetros. Durante a vida fetal, ele desvia o sangue da veia porta esquerda para a veia cava inferior. Essa comunicação é necessária durante a vida fetal para que o sangue oxigenado originário da placenta, que chega ao feto pela veia umbilical, não passe pelo sistema porta ante de chegar ao coração. Após o nascimento o ducto venoso é obliterado e dá origem ao ligamento venoso.

Persistindo o insulto placentário com consequente hipóxia fetal, após as alterações de fluxo da artéria umbilical e da ACM, a manutenção da vasoconstrição periférica termina implicando em um aumento da pressão das câmaras cardíacas, e, por conseguinte, em alterações no território venoso fetal. O aumento da pressão cardíaca no ventrículo direito acarreta em um fluxo retrógrado na veia cava inferior durante a contração atrial, o que provoca uma redução no fluxo sanguíneo no ducto venoso. Dessa maneira, o estudo Doppler deste vaso exibe um aumento dos valores de IP nessa situação. Com a evolução do quadro, a onda “A” (que se refere à sístole atrial) se mostra ausente ou reversa. Assim, o ducto venoso é considerado um importante parâmetro hemodinâmico preditor de morbidade e mortalidade neonatal, uma vez que, quanto maior seu IP, menor é o pH ao nascimento, correlacionando-se fortemente com eventos neonatais adversos.

 

Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) no ducto venoso em função da idade gestacional - percentis 50% (verde) e 97% (vermelho). 

 

 

O ducto venoso apresenta um aspecto característico ao Doppler espectral, com dois picos e um vale, relacionados ao fluxo e à resistência do coração fetal. O primeiro pico representa a sístole ventricular. O segundo pico representa a diástole ventricular.  O vale  representa a sístole atrial e  é chamado de "onda a".

 

A redução, a ausência e a inversão do fluxo nesse ponto são relacionados à hipóxia fetal.

 

Doppler normal no ducto venoso. Notar a presença de fluxo abundante (realces em verdes) no momento da contração atrial fetal ("onda A").

 

Doppler alterado no ducto venoso. Notar a ausência de fluxo (setas amarelas) no momento da contração atrial fetal ("onda A").

 
 
Doppler alterado no ducto venoso. Notar o fluxo reverso (realce em vermelho) no momento da contração atrial fetal ("onda A").
 

 

 

Artérias uterinas

 

A invasão trofoblástica normal ocorre no primeiro trimestre da gestação, ocorrendo a penetração do endométrio por tecido placentário e o remodelamento dos vasos sanguíneos uterinos, para garantir um suprimento sanguíneo adequado à placenta em crescimento. Quando há deficiência nesse processo e não há uma diminuição fisiológica da resistência vascular uterina, pode haver complicações na gravidez, como pré-eclâmpsia e restrição de crescimento fetal.

Enquanto a artéria umbilical nos informa a respeito do compartimento fetal da placenta, a avaliação com Dopplervelocimetria das artérias uterinas nos informa sobre o funcionamento do compartimento materno. 

A resistência aumentada nas artérias uterinas, notadamente no primeiro trimestre, é fator de risco para desenvolvimento de pré-eclâmpsia precoce (antes de 37 semanas), podendo ser o seu IP utilizado em algoritmo de cálculo de risco para essa doença, juntamente com outros dados clínicos e laboratoriais da paciente. 

O Doppler das artérias uterinas também é utilizado como critério diagnóstico da restrição de crescimento fetal precoce. Em fetos com peso estimado entre os percentis 3 e 10, o diagnóstico de restrição de crescimento será dado pela presença de alteração de Doppler, sendo o das uterinas uma das possibilidades, juntamente com o das artérias umbilicais.

 

Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) médio das artérias uterinas, em função da idade gestacional - percentis 50% (verde) e 97% (vermelho)

 

 A incisura protodiastólica marcada en amarelo sugere aumento na resistência ao fluxo sanguíneo, que deve ser quantificado pelo valor do IP, nesse caso IP=1,96, alterado dado que a gestação tem 25 semanas. Veja que a frequência cardíaca materna é menor (há menos ciclos no mesmo intervalo de tempo) do que a frequência cardíaca fetal registrada nos espectros  fetais obtidos nas artérias umbilical e  cerebral média e no ducto venoso.


 

As alterações do Doppler devem ser avalaidas, sempre que possível, em associação com  o percentil do peso fetal estimado pela biometria, para que se identifiquem os casos de Restrição de Crescimento Fetal (RCF), que devem ser classificados e conduzidos da seguinte forma:

 

Interpretação e conduta para as alterações do Doppler Obstétrico associado ao percentil do peso fetal estimado segunto Figueiras e Gratacós (2014)*.

RCF = restricção do crescimento fetal. PIG = pequeno para a idade gestacional CA= circunferência abdominal; AUMB = artéria umbilical; AUt = artéria uterina. DV = ducto venoso; CTG = cardiotocografia 

* Figueras F & Gratacós E; Update on the Diagnosis and Classification of Fetal Growth Restriction and Proposal of a Stage-Based Management Protocol, Fetal Diagn Ther, 2014; 36:86-98

 

 



 
 
 
 
. Interpretação do doppler obstétrico na avaliação da vitalidade fetal. Dr.Pixel. Campinas: Dr Pixel, 2016. Disponível em: https://drpixel.fcm.unicamp.br/conteudo/interpretacao-do-doppler-obstetrico-na-avaliacao-da-vitalidade-fetal. Acesso em: 21 Nov. 2024